quarta-feira, agosto 02, 2006

Tavira - Oriente

Aquele beijo de despedida no cais dos comboios era suposto trazer de volta algumas coisas tais como:
toda a areia da praia, a luz da fogueira onde nos vi-mos pela primeira vez, a garrafa de vodka que bebemos junto à água sobre um céu a transbordar de estrelas, a intimidade aconchegante e apinhada de tralha das nossas tendas (onde parecia que íamos viver para sempre), o sabor adocicado do primeiro charro, o camaleão nos confins da ilha perdido entre as arvores (acompanhou-nos durante dias e baptizámo-lo (a) de “Lucie”!), o que é certo é que estava mesmo convencido que esse beijo no cais da estação de comboios de Tavira devia trazer aqueles Slide Shows de recordações que aparecem sempre nos momentos terminais, mas acabou por trazer quase nada, apenas um sabor insonso e descolorido, juntamente com aquele travozinho de angustia e agonia a que sabem os beijos de despedida.
Depois já só me lembro de mim dentro do comboio e tu do lado de fora apenas a alguns metros da janela mas era como se estivesses milhares de quilómetros distante, reduzida apenas a uma mão que acenava, e depois num soluço o comboio começou a avançar lentamente num vagar sádico, e a tua imagem a reduzir-se até ser mais um ponto no infinito a perder-se na paisagem, a perder-se na paisagem que se afastava, a paisagem que diminuía, e perdia consistência, e começava a mudar a cada instante. Depois disso só o matraquear do comboio juntamente com horizontes repentinos a correrem na janela, só extensões enormes de sobreiros ordeiramente dispostos pela paisagem e um enorme desejo de sair e dormir debaixo das suas sombras. Depois apenas montes perdidos com casas abandonadas e a ideia estúpida de me apetecer comprar um deles nem eu sei bem como nem para quê! Depois foram aparecendo caminhos de terra batida que iam dar a lado nenhum, e lembro de me ter apetecido caminhar por eles fora também em direcção a lado nenhum. Depois disso não sei mais nada! Acho que depois já não me recordo de me lembrar de coisa alguma.

...

O comboio entra por um túnel a dentro escavado num terreno árido e rude e de repente fica tudo escuro, na saída aparecem graffiti’s de mau gosto colados num muro. Antes quando era miúdo, nos túneis, quando tudo ficava escuro lembro-me que a minha mãe me costumava dar a mão até surgir novamente luz. Agora nesta viagem não há ninguém para me dar a mão.
Uma rapariga bonita, loira, olhos azuis, sentada uns bancos à minha frente, têm um olhar perdido. Olha para mim e depois para dois putos novos que passam por nós no corredor com mochilas de campistas às costas e volta a mergulhar aquele olhar perdido no livro que está a ler.
Levanto-me para ir ao tradicional WC minimalista, uma retrete minúscula, um lavatório minúsculo e nada mais. Resolvo fumar um cigarro antes de voltar ao meu lugar naquele espaço exíguo que separa as carruagens. O logótipo do cigarro sem a cruz a pairar por cima da minha cabeça permite-o. Volto ao meu lugar.
Aldeias de meia dúzia de casas na janela. Imagino como seria viver lá numa dessas aldeias, numa dessas casas brancas no meio de nenhures, primavera, verão, Outono, Inverno, viver lá contigo. Sete dias por semana, trinta dias por mês, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Viver lá contigo.
A rapariga loira larga o livro e adormece por instantes.
Um telemóvel toca de quando em quando com as melodias do costume. Olho novamente para a janela e tenho a sensação que podia ficar assim a viajar sem destino nem sei por quanto tempo. A melodia de “On the road to nowhere” dos Talking Heads fica-me então impregnada no pensamento. Apetece-me de repente poder ouvir essa música. Penso que o corpo humano deveria ter a funcionalidade de activar uma banda sonora para os diversos momentos na nossa vida exactamente como no cinema. Reboliço no final da carruagem. Volto-me para ver o que se passa. Uma senhora de idade está em pânico porque entrou e a sua bagagem tinha ficado toda lá fora. Vou instintivamente ao local do sinistro nem sei bem fazer o quê! A senhora aflita tenta saltar já com o comboio em andamento. Grita desesperada que tinha lá todas as suas coisas, inclusive as chaves de casa. Eu, um tipo de cor, e um tipo de rastas no cabelo com tshirt Bob Marley deitamos as mãos à senhora e evitamos que ela se desfaça no chão. Ela em pânico e nós a tentar-mos acalmá-la o melhor que sabemos. O Bob Marley visivelmente tocado com algumas cervejas e charros à mistura para minha surpresa revela um bom senso extraordinário. Impede que a senhora toque o alarme porque poderia ser multada, garantiu-lhe que não se preocupasse com a mala porque ela certamente lhe iria parar ás mãos, conta-lhe que já tinha perdido um telemóvel e que lhe fora devolvido sem problemas e chama o fiscal para tomar conta da situação. Fico uns minutos à conversa com o tipo de cor e com o Bob Marley que me crava um cigarro. Compreendo inteiramente a aflição daquela senhora. É a aflição de sentir que se deixou a vida abandonada num cais de embarque. Eu sei o que é isso. Tenho igualmente a sensação que deixei a minha vida em Tavira a acenar-me do cais com um adeus. Mas no meu caso ela não me seria devolvida pela Carris na secção de perdidos e achados.
Depois são bosques imensos de pinheiros a desfilarem na janela. Fico com a sensação que encerram em si mistérios sombrios. Vêm-me á cabeça ideias estúpidas como por exemplo uma vontade enorme de dormir desprotegido no meio deles.
A loira continua mergulhada no livro. Parece-me cada vez mais bonita. Levanto-me ligeiramente para lhe vislumbrar o peito por breves segundos. O comboio pára. A loira levanta os olhos do livro e fixa–me por instantes. Cruza-se um outro comboio ao nosso lado. Pára paralelo. As pessoas olham-se mutuamente através das janelas. Interrogo-me de onde vêm e para onde irão. Interrogo-me se são felizes, quais serão as maiores preocupações das suas vidas naquele preciso momento? Em que estarão pensando? Não deixo de ficar surpreendido com tanta gente a andar de comboio, com tanta gente a cruzar o pais numa quinta feira perdida de Agosto. Penso que talvez essas pessoas que me olham da janela se interroguem igualmente acerca de mim. É qualquer coisa do género como se estivéssemos frente a frente a olharmos nós próprios em universos paralelos.
O comboio retoma lentamente o andamento até ir ganhando velocidade. Na janela um carro solitário parado por baixo de um sobreiro. É um carro com aspecto recente. Não está ninguém lá dentro. Interrogo-me onde estará o condutor? Olho em toda a extensão da paisagem e não vislumbro ninguém.
Paramos numa estação. Não lhe consigo ler o nome. Apenas vejo a senhora que perdeu a mala sair acompanhada por um funcionário da CP.
Uma criança começa a chorar num berreiro incomodativo e estridente. Pergunto-me porque trazem crianças tão novas nestas viagens? Acho isso absurdo. Apercebo-me igualmente que esse incómodo que me causa o choro da criança contradiz com o desejo que tenho em um dia também ter um filho, e depois não penso mais nisso porque entretanto:
A rapariga loira larga novamente o livro. Fita-me por uns instantes e lança o seu olhar perdido na janela. Aproveito para me levantar ligeiramente mais uma vez de modo a lhe poder vislumbrar novamente o peito agora mais descoberto pois têm o livro poisado no colo. Apetece-me meter conversa com ela para saber a razão daquele olhar perdido.
Há fumadores presos nos compartimentos exíguos por entre as carruagens a largarem fumo da boca como se fossem animais perigosos encarcerados numa jaula. O pica aparece repentinamente do nada e pede-me o bilhete. É um homem gordo e não é muito bonito. Noto-lhe uma aliança grossa no dedo anelar da mão esquerda. Têm cara de quem têm um filho. Lembro-me de uma anedota antiga: “O filho de um revisor dos caminhos-de-ferro vai para a primeira classe. Depois do primeiro dia de aulas vira-se incrédulo para o pai e pergunta: - Pai estou na primeira classe e as cadeiras são de pau?”. Consigo sorrir com essa anedota velha e estúpida. Conclusão imediata: Não devo estar bem!
Por isso mesmo levanto-me. Ando uma série de carruagens para chegar ao bar. Lá tudo parece tremer ainda mais, o equilíbrio é instável. Comem-se sandes e bebem-se refrigerantes. Bebo uma água e fumo um cigarro. Um curso de água na janela limpo e brilhante reflecte o céu em toda a sua extensão como um espelho. Dá vontade de dar um mergulho nessa água e depois seguir viagem. Ou talvez não! Anseio que a viagem nunca mais chegue ao fim. Olhar paisagens pela janela é algo deliciosamente hipnótico. Os cortinados começam a cair um a um e vê-se gente a adormecer. Vão-se anunciando estações pelo altifalante.
Uma apetitosa e pequena esplanada de três mesas junto à estação de Alcácer do Sal. Apetece sentar-me e ficar ali a beber cervejas o resto da tarde sem mais nenhumas preocupações na cabeça. Depois mal começa-se a anoitecer logo pensava no que iria fazer.
Um grupo de três amigos com pronúncia do norte que acabaram de entrar tomam conta da carruagem com um jogo de moeda. A amizade deles, o bom humor e a pronúncia constituem uma mistura explosiva que capta a minha atenção e a da rapariga loira. Ela lança-me alguns sorrisos e olhares cúmplices por eu também estar a compartilhar a boa disposição daquele grupo de amigos. Arruma o livro numa mala. Ainda tento ler o título da capa mas não consigo, apenas lhe vislumbrei mais uma vez o bico do decote. O seu olhar pareceu ganhar mais algum brilho com a boa disposição do jogo da moeda.
(Entretanto acho que adormeci por instantes. Acho não! Adormeci certamente. Não sei é por quanto tempo!)
Quando acordo os três amigos do porto tinham também adormecido. A loira tinha também adormecido. Ao vê-la assim de olhos fechados, por momentos, o comboio parece ter mergulhado numa paz imaculada. Acabei por não saber a razão daquele olhar perdido nem o título do livro que estava a ler. Mas tudo isso perdeu importância porque entretanto:
anuncia-se a estação do Oriente. Tudo a precipitar-se de malas em punho para a saída. Cá fora o esqueleto da estação por cima da minha cabeça. O parque das nações à frente. A cidade (que eu aposto) sem nenhuma novidade. Chego a Lisboa e isso deveria ser mais do que suficiente para me sentir feliz. Nenhum desejo nem nenhuma necessidade especial toma conta de mim, apenas aquela sensação estranha de não haver nenhuma novidade e de na minha ausência o tempo ter parado numa imobilidade museológica. É uma sensação um bocado estúpida porque parece que todo o universo circula à minha volta.
Depois um táxi, depois do táxi a minha casa que se manteve fielmente estática a aguardar ansiosa o meu regresso. Depois (não me apetece nada mas) ligar o rádio, (não me apetece nada mas) ligar a televisão, sintonizar a SIC Noticias para saber as últimas do mundo, (não me apetece nada mas) ligar o computador, dois toques de rato sobre o ícone da Internet, mais dois toques sobre os bonequinhos gémeos do Messenger, ver quem está (e continua a não me apetecer nada), de qualquer maneira também não está ninguém interessante, ler alguns emails, caixa de correio entupida, dezenas de emails e a esmagadora maioria é lixo que não foi devidamente filtrado, três deles são digamos que pessoais, depois de Tavira deixaram de ter algum interesse relevante. Aflige-me essa ideia. A ideia que o antes e depois de Tavira comece a marcar a minha vida durante algum tempo com a mesma solenidade com que o nascimento de Cristo também divide a nossa existência em antes e depois.
Não me apetece mas mesmo assim vai um duche de água fria. A areia e o sal da ilha ainda teimosamente colados ao corpo, espalhados também na roupa e na mala e em todo o lado. Já não me apetece mais ter a areia e o sal da ilha colados ao corpo (claro que não! que idiotice! porque haveria de me apetecer?), quero é limpar-me, e já não é só a areia e o sal que me incomoda, na realidade já não me apetece mais é ter pedaços de ti a acenares-me do cais colados ao corpo, pedaços de ti a ferirem-me a pele, espalhados por todo o lado como fragmentos de uma bomba, já não me apetece mais ter-te sobre a minha pele (“under my skin” como refere a canção que ironicamente começa a tocar no rádio), ter pedaços de ti e acima de tudo saber que tão cedo não existirá nenhum duche que os consiga eliminar.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Os Degraus da Torre dos Clérigos (isto é um teste)

Estou a subir os degraus da Torre dos Clérigos e a pensar que só tenho meia hora. Estou a subir os degraus e ao mesmo tempo a contá-los, 1, 2, 3, 4, o guarda da Torre a confundir-me com um Espanhol à entrada (Usted tiene hasta treze e trinta, después fermo la puerta), 23, 24, 25, estou a subir os degraus e a pensar que tenho medo que o porteiro se vá embora almoçar e me deixe ficar aqui dentro fechado, 35, 36, a subir os degraus e a ouvir as vozes de ave de rapina dos Espanhois no cume da torre a comerem-me os miolos “bale, bale, bale”, 47, 48, 49, a subir os degraus da Torre dos Clérigos e a pensar em ti lá em cima, 61, 62, a subir os degraus e a pensar em nós os dois lá em cima, três anos atrás, 81, 82, 83, nós os dois lá em cima e um dia de chuva como o de hoje, 94, 95, 96, nós os dois a admirar a Sé, a admirar a Ribeira, a admirar Gaia do outro lado, 101, 102, 103, eu segurando o guarda-chuva aberto e tu amparada no meu ombro, 110, 111, lembro-me de gritar “o-m-o-l-e-t-e” enquanto tiravas a fotografia, 125, 126, 127, a subir e a pensar que quero tirar uma foto igualzinha a essa que tu tiraste, 134, 135, uma foto igualzinha a essa que eu rasguei entretanto, 140, 141, uma exactamente com o mesmo enquadramento, o mesmo equilíbrio, a mesma tonalidade,149,150, a Sé à esquerda, a ribeira em frente, 151, as casas amontoadas acotovelando-se por todo lado, 152, as roupas no estendal, as parabólicas para apanhar o FCP na Sport TV, 152, 153, a subir os degraus e a perder-me na contagem, 170 ou 171? mas continuando a contar mesmo assim, 172, 173, a subir e a pensar afinal quantos degraus é que terá o raio da Torre mais alta de Portugal, 186, 187 a subir e a sentir o cume já próximo, 199, 200, 201, a subir e a sentir-me um João Garcia no topo do Everest sem oxigénio, 215, 216, a subir e a pensar nos 225 degraus inscritos no folheto oficial, 226, 227, o tanas é que é, 230, 231, mais, 232, muito mais do que isso, 249, 250, a subir os degraus e a pensar que se calhar não os devia subir, 263, 264, que talvez os devesse apenas descer, 277, 278, a subir os degraus e com medo de te encontrar lá em cima, 284, 285, a subir os degraus e com medo de me encontrar lá em cima a gritar “o-m-o-l-e-t-e”, 291, 292, a subir os degraus e a começar a ver uma luz branca, baça, disforme, 298, 299, 300, a chegar ao topo e a perceber que nunca se deve voltar aos sitios onde outrora fomos felizes.
Posted by R. S. at 11:02 PM